Portugal é líder de um consórcio de criação da rede de comunicação quântica europeia. Projeto de seis milhões de euros inclui produção de máquina de cifra nacional

Dados de cartão de crédito, registos de saúde, emails, todo este manancial de informação, pessoal e privada, está à mercê de pessoas mal-intencionadas, como se percebe facilmente pelas sucessivas notícias de ataques. E isto só tende a piorar, com a chegada dos computadores quânticos, que já não estão tão distantes assim, e que serão capazes de, em menos de nada, descodificar os códigos de acesso aos dados. “Os protocolos criptográficos atuais não são robustos à computação quântica”, alerta Armando Pinto, investigador do grupo de Comunicação Quântica Ótica do Instituto de Telecomunicações e professor na Universidade de Aveiro. O problema é mais grave nos sistemas que se baseiam em cifras assimétricas, aquelas que são fechadas com uma chave privada, como acontece no cartão do cidadão, por exemplo. “Tudo isto morre assim que houver computação quântica. O sistema bancário cai”,complementa Ricardo Chaves, professor no Instituto Superior Técnico e investigador no INESC-ID. Mesmo os sistemas baseados em chaves simétricas, em que para a mensagem poder ser lida ambos os pontos, emissor e recetor, têm de ter a mesma chave, ficarão “enfraquecidos”.

Se é da quântica que vem o problema, também é da quântica que virá a solução. O normal, hoje em dia, é os dados sensíveis serem encriptados e depois enviados através de cabos de fibra ótica, ou outros canais, juntamente com as chaves necessárias à descodificação da informação. “Os dados e a chave são enviados como bits clássicos – um fluxo de impulsos elétricos ou óticos que representam zeros e uns. E isto torna-os vulneráveis a hackers que conseguem ler e copiar os bits em trânsito, sem deixar rasto”, explica-se na revista MIT Technology Review. “A comunicação quântica tira partido das leis da física quântica para proteger os dados. Estas leis permitem que as partículas – tipicamente fotões de luz para transmissão de dados ao longo de cabos óticos – atinjam um estado de sobreposição, o que significa que podem representar múltiplas combinações de zero e um simultaneamente (estas partículas são conhecidas como qubits).” Na cibersegurança usa-se o facto (difícil de conceber!) de quese um observador assistir ao trânsito dos qubits, o muito frágil estado quântico ‘colapsa’ ou para zero ou para um, ficando registada a intromissão. Ou seja, nenhum hacker consegue invadir o sistema sem deixar rasto. Vários países e empresas estão a desenvolver sistemas de comunicação à prova de computadores quânticos. A defesa europeia também quer ter o seu. E está a tentar lá chegar através do projeto DISCRETION, liderado pela Defesa Portuguesa e pelo Gabinete Nacional de Segurança (GNS) e coordenado pela empresa Deimos Engenharia, tendo como parceiros em Portugal o Instituto de Telecomunicações sediado em Aveiro, a AlticeLabs, a Adyta, start-up da área da segurança, o Instituto Superior Técnico com os grupos de criptografia e segurança e o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA). O projeto recebeu um financiamento de 6,2 milhões de euros, envolvendo ainda instituições como as espanholas Telefónica ID e Universidade Politécnica de Madrid, o Instituto Austríaco de Tecnologia e a start-up italiana Nextworks.

SOBERANIA NACIONAL NA CIBERSEGURANÇA

Uma parte crucial do projeto passa pela construção d os nós quânticos, ondeacontece a codificação e descodificação da mensagem quântica, ou seja, a produção e leitura dos qubits. “Os nós mais desenvolvidos são os construídos na China, Coreia, Japão. É muito relevante serem construídos em Portugal”, observa a responsável pelo projeto, Catarina Bastos, da Deimos. Em países como a Alemanha, ou a Chin a, onde a rede quântica é gigantesca e chega a envolver satélites para a transmissão da mensagem, a comunicação entre infraestruturas críticas já é feita em boa parte através destatecnologia. Trata-se, “maioritariamente”, de comunicações civis, comerciais. “Portugal está a ser pioneiro ao desenvolver a sua própria tecnologia e esta rede segura baseada em redes definidas por software com nós quânticos no âmbito da Defesa”, sublinha Catarina Bastos, doutorada em Física.

“Olá, ganhámos o DISCRETION”, ficará para a história como a primeira mensagem transmitida em Portugal através de um canal de comunicação quântico integralmente produzido no país. Aconteceu no ano passado, ao longo de uma distância de quatro quilómetros, entre o Comando Aéreo da Força Aérea, em Monsanto, e o EMGFA, no Restelo. E já que é para ganhar autonomia nesta matéria, estão ainda a ser construídas as máquinas de cifra, as que codificam a mensagem e que até hoje têm sido compradas a França. “Porque não havemos de ganhar soberania nesta área e produzir as nossas próprias máquinas de cifra, em vez de as comprarmos?”, questiona o Almirante António Gameiro Marques, diretor do GNS. Estão a ser pensados vários casos de uso, quer militares, quer civis, para a comunicação entre estruturas críticas, como o controle de uma barragem, por exemplo. “Lá para o primeiro trimestre de 2023 já deveremos ter a máquina decifra nacional a funcionar”, adianta o responsável máximo do GNS. Grande parte do desenvolvimento desta máquina estará a cargo de Ricardo Chaves, que terá a responsabilidade de criar o algoritmo. “Já existe um sistema de cifra nacional que é muito robusto, quer perante ataques informáticos, quer físicos. Nem com um berbequim se consegue destruir”, adianta. Com este novo projeto, será possível então integrar o nível de segurança extra – que torna a vida de um potencial atacante “praticamente impossível” – da comunicação quântica e ainda ganhar autonomia relativamente à produção da máquina de cifra. O que pensaria Alan Turing dos caminhos que a criptografia seguiu depois deter ajudado a Inglaterra a combater os nazis com a sua máquina Enigma.

 

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